segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Mais uma experiência


Acabo de concluir a Maratona de Foz e a Subida da Graciosa. Estou com 750 Km e ainda falta 1/4 do desafio.


Recebi uma correspondência de um amigo maratonista, que se chama Miguel Delgado. Em várias provas temos chegado juntos, mas nunca havíamos conversado.

Ele soube do meu desafio de 1.000 Km e me pediu para ir relatando cada prova, o que achei uma boa idéia e o farei.

Acho boa idéia principalmente para externar que temos mais fracassos que vitórias, mesmo que ainda não tenha sentido o gosto amargo de nenhuma desistência, porém meus tempos estão piorando a ponto de estarem próximos do ridículo, para o que fazia antes desta pauleira. Temo que estou perto de perder minha virgindade em termos de desistência, mas vamos ver até onde aguento.


Antes de iniciar a descrição dos 1.000 Km vou postar algo que escrevi sobre a BR a pedido dos amigos militares da minha turma.




Meu amigo, muito obrigado por suas palavras bondosas, mas acho que toda esta conquista se deve muito mais à minha equipe do que a mim mesmo.
Tenho dito que não existem homens de aço, mas apenas cadetes, oficiais e velhos reservistas que tiveram a chance de se manterem em forma durante a vida militar.
Assim que fui para a reserva passei a advogar e perder a oportunidade de treinar.
Depois de algum tempo vi que justiça em nosso País é mole, ineficiente e corrupta e não podia mais contratar para defender alguém cuja causa era certa, mas que não se inseria nas falcatruas de mais esta instituição corrompida pelo vício republicano.
Deste momento em diante uni a base sólida que tivemos nos anos de caserna e todo o tempo do mundo para me dedicar àquilo que passou a me dar prazer.
Portanto o sucesso se deve à base, ao tempo e um pouquinho de vontade.

Vamos esclarecer os pontos que você questionou.

Esta prova foi de 217 Km e a realizei em 56hs e 50". Você pode fazer de tudo, desde que chegue ao final com suas próprias pernas em menos de 60hs.

No meu caso, como militar, saí de Curitiba e fiquei três dias reconhecendo o trajeto no inverno (as condições se alteram drasticamente no mês de janeiro), fiz toda uma planilha e montei uma equipe familiar de amadores que foram incansáveis porque me amam.
Durante o percurso estavam previstas duas paradas de 2 horas, mas eu abortei as duas. A primeira após 15 horas de prova, pois estava inteiro demais para descansar. Já a segunda, apesar da exigência da equipe, tive que diminuir, pois, já com 40 horas eu havia entortado todo o corpo para o lado esquerdo e os músculos das costas e do pescoço torravam de dor. sabia que teria que me arrastar até o final e não podia perder tempo. Some-se a isto a noite anterior à largada, quando também não dormi devido à adrenalina produzida pela emoção de participar de um evento internacional de tal envergadura.

Paradas eu fazia para tomar café, almoçar, jantar e cear, mas nenhuma maior que 40 minutos. Neste tempo tomava banho, recebia massagem de gelo e passava pomadas contra a dor e vaselina por todo lado. Trocava meias e tênis e levava um ponta-pé na bunda quando o tempo de parada se esgotava. No último dia (16 horas finais) não mais parei, pois me deslocava por cerca de 2 Km e tinha que receber massagem direto nas costas.

Na saída o nervosismo é aquele esperado para um evento em que muitos (a maioria) ficam pelo caminho, alguns vão para hospitais (um inglês só foi liberado 2 semanas depois e correu risco fatal e teve seu rim comprometido) e todos, rigorosamente todos, enfrentam dores e privações incríveis. Antes da largada um atleta é convidado a cantar o nosso Hino, acompanhado pelo violão de outro competidor. Me lembrei de onde vim e de como chegara até ali com apenas a minha família me apoiando e chorei tanto que pensei que iria desmaiar sem dar sequer a largada.

Mas largamos e formamos um grupo com alguns atletas conhecidos de outras provas (normalmente corremos 24 horas) até que tive que parar para tirar uma calça de abrigo que usava apenas nos primeiro Km que se desenvolviam em mata e havia o perigo de cair e torcer algo (e fim de sonho). Neste momento meus amigos se foram e eu me distraí e errei o percurso, correndo perdido por cerca de 2 Km.

Quando voltei ao trajeto correto estava desesperado para recuperar o tempo gasto e os amigos, mas a distância era enorme. Cheguei ao meu primeiro acampamento (cada um desloca o seu) com apenas 3 minutos de atraso e apenas com uma perna doendo. Passei um gel milagroso chamado Biofreeze e quando larguei estava inteiro.

45 Km da largada vem o primeiro terror da prova. Subida do Pico do Gavião. Você sai de 860 m e sobe para 1690m em apenas 2,5 Km. Ali ocorreu (eu já tinha passado) uma cena comovente. Um atleta de Brasília ao chegar no topo se colocou em posição de Buda e meditou por algum tempo. Pouco depois sua mãe (que o esperava) se juntou a ele e começaram a chorar em silêncio. A explicação veio depois: o pai deste jovem fora um dos que criara no alto do Pico uma rampa de asa delta e, em um de seus saltos, veio a falecer bem ali.

A parada para janta foi em Andradas e já havia avistado uma atleta da minha velocidade, o que me fez desistir de parte do descanso para tentar alcançá-la. A primeira noite teve um grande trecho em que a via estava sendo cortada para a passagem de vários dutos de gás. Mesmo com a lanterna de cabeça, mais escorregava e me esborrachava na terra molhada e com enormes sulcos de lama do que progredia. Noite de lua nova, mas o tempo passava mais rápido do que os quilômetros.

Com 84 Km de prova cheguei ao PC de Serra dos Lima e vi uma das parceiras de velocidade. Ela abortara a parada e eu resolvera ficar, pois minha equipe de amadores estava morta. Pouco depois vi que não iria conseguir dormir mesmo e acordei minha tropa e lhes disse: -Vamos que eu estou inteiro, se alguém quiser ficar amanhã o carro volta para pegar. Ninguém quis ficar. Neste momento os carros de apoio, mesmo andando por vias alternativas, ficavam atolados às dúzias (vários 4x4). Nós tínhamos alugado um Fox Cross e não tínhamos pilotos, mas nunca chegamos a atolar.

Durante aquela noite a descida era terrível. Pedras rolando o tempo todo, córregos para transpor e breu, muito breu.

Como eu estava inteiro, fui passando um por um dos meus companheiros. Amanheceu quando estávamos com cerca de 100Km. Parei no acampamento para o café e soube que o ponteiro da minha turma acabara de passar. Como sempre, abri mão do descanso e parti em busca do amigo.
Com mais 6 Km eu o passei e fiquei a poucos quilômetros de uma das feras da prova, o Iroman filipino Mr. Lee.

Nesta manhã passamos pela única parte da prova em terreno plano. São 20 Km de refresco entre Crisólia e um pouco depois de Inconfidentes. Neste trecho fiz de tudo para aumentar a velocidade e me distanciar dos amigos.

Paramos para o almoço e as mulheres acharam por bem comprar a comida em um restaurante local. Banho, troca de roupa, meias e tênis, massagens e pé na bunda. Neste momento já tínhamos contabilizado mais da metade de desistências e ainda estávamos justamente no meio da prova e com as piores montanhas por vir. Nesta tarde quem me deu apoio foi minha mulher e acho que comecei a ficar muito ansioso, pois eu a mandava para frente e para traz em busca dos atletas mais próximos. Na frente sempre Mr. Lee, mas na retaguarda ninguém, pois, mesmo ficando em cima dos morros distante de mim por 4 Km, ela voltava dizendo que ninguém era avistado.

Esta situação, confortável para qualquer atleta, é motivo de perda de foco para mim. Comecei a acelerar mais ainda para alcançar o monstro Lee (1,78 m e 68 Kg contra meus 1,82 e mais de 86Kg). Aqui me desgastei muito e não conseguia diminuir a distância.

Ao anoitecer mandei mudar o acampamento da janta de Estiva para Tocos de Mogi que ficava uns 20 Km antes. Notei que estava começando a vergar para a esquerda, mas não tinha uma bolha ou qualquer dor muscular. Estava começando a cansar com apenas 158 Km. Banho, gelo e massagens, uma macarronada especial, sem pé na bunda. Acho que deveria ter seguido, mas a equipe me obrigou a deitar. Quando consegui convencê-los a me deixar seguir, não descansara nada, estava muito nervoso e levantei totalmente torto.
De Tocos a Estiva é que a prova começa. Pirambeiras incríveis, mais de uma hora de subidas ininterruptas. Nas descidas eu tinha que andar de lado, com a perna direita na frente e a esquerda de arrasto. Aqui eu temi não terminar a prova. Ocorre que a coluna estava tão vergada que comecei a achar que, em algum momento, um disco iria sair do lugar e eu poderia ficar paralítico. No meio daquele breu eu chorei algumas vezes. As dores na lateral direita das costas e do pescoço eram insuportáveis, mas eu não reclamava disto. Apenas me lamentava com meu filho de que estava inteiro e como esta vergada poderia me prejudicar. Meu filho foi sábio no meio daquele breu: -Pai, assim como você está com as costas em pandarecos, os outro estão com bolhas incríveis, pés sangrando, dores musculares nas pernas, joelhos torcidos, diarréia, vômitos, sono, fadiga extrema. Pense assim. Você só tem esta coluna torta, está muitas horas na frente da sua meta e vai chegar no tempo, nem que seja de joelhos.

Dito isto, seguimos para Estiva, onde mandei o carro na frente para pedir médico e massagista para me avaliarem, pois temia por minha coluna. Para não ser desclassificado de cara, consegui correr assim que entramos na cidade. Fiquei sendo massageado por quase meia hora, mas o que eu queria mesmo era saber da coluna.

Veredicto médico:-Seus músculos laterais das costas, no lado direito, se esfacelaram e não possuem mais sustentação. Os do lado esquerdo continuam tracionando. Por este motivo você irá vergando cada vez mais, mas sua coluna está intacta e protegida pelos músculos próximos a mesma.

Mais um alento. Como um Purê de batatas, recuso o banho, pois as costas estavam quentes das massagens e vamos seguir. Só faltam 41 Km (uma maratona).

Resolvemos que chegaríamos dentro do tempo, mas, para tal, faríamos lances de 2 Km e descansaríamos (literalmente, pois minha equipe também estava sofrendo com o cansaço). Nisto me passa o primeiro atleta que eu deixara bem para traz no dia anterior. Eu sequer esbocei uma reação. Estava desprovido de tudo, até de brios. Sua equipe era de profissionais e sua fisioterapeuta era viúva de um militar. Ela fez questão de fazer e ensinar uma massagem que me deixava ereto por alguns minutos. Passamos a fazer as paradas com essa massagem.

Os quilômetros não passavam, a cidade nunca chegava. As pirambeiras pareciam se multiplicarem. Não sou religioso, mas eu pensava que Deus não poderia ter criado algo tão lindo e tão doloroso ao mesmo tempo.

Já estávamos chegando próximo de 16 hs. Quando avistamos Paraisópolis pela primeira vez. Já havíamos sido passados por 9 atletas naquele dia. Mesmo tendo visto a cidade ainda andamos muito. A estrada dava voltas para enfrentar as montanhas e uma hora parecíamos perto e logo a seguir longe.

De repente um membro da minha equipe foi à cidade e voltou dizendo que ainda haviam duas pirambeiras pela frente. Enfrentei a primeira com alguma força, mas me joguei no chão quando vi a segunda. Não era possível que aquilo existisse e naquele lugar. Neste pedaço da prova os apoios de outro militar do Exército já estava comigo, pois torciam pelo velho Coronel. Ao me ver estatelado saíram para buscar a fisioterapeuta que já me socorrera antes.

Ela chegou, fez massagens e me exigia que eu respirasse apoiado em um bambu usado pelos peregrinos do Caminho da Fé. Pouco depois começamos a última subida. Finda esta entramos no paralelepípedo da cidade e já avistávamos a ponta da torre da Catedral, onde estava a chegada.

Juntamos a equipe, minhas filhas, meu neto, os militares, a fisioterapeuta e eu agradeci a todos apenas com um olhar para cada um, pois pensava que não tinha forças para mais nada.

Nisto a Sílvia, linda índia viúva do militar da Marinha e fisioterapeuta, toma apalavra e diz: -Gente, no alto da montanha está vindo um atleta. Vejam (eu não consegui me virar)! Ele não vai nos passar. Coronel, vamos lembrar os tempos do quartel. No hop, uma perna de cada vez. Assim iniciamos uma corrida tranqüila. Meu neto vendo aquele hop, corre para a mãe e diz. –Para o meu vô é chop!!!! E todos passaram a gritar, chop, chop, chop. O cortejo tinham carros meus e do Exército com som e buzinas e sirenes. O povo saía na rua, os repórteres filmavam e choravam ao mesmo tempo e eu fui me afastando da massa que tentava me acompanhar, correndo totalmente pendido para o lado esquerdo, mas com uma velocidade como se estivesse começando a prova naquele momento.

Foi emocionante para mim, minha família, amigos,outros competidores que não podiam acreditar que alguém chegasse naquele estado e para o público em geral.

Ah! O outro atleta que chegou exatos um minuto depois de mim é um monstro americano que tentou ser o primeiro homem a concluir as 3 BADs.
Só que quem conseguiu, poucas semanas depois, foi um brasileiro (Márcio Vilar) que estará correndo em Santa Maria nas 24 horas, junto comigo. Único do mundo!!!!!! Brasileiro.

Para mim, acredito que devo tudo o Exército, pelo físico, pela organização de toda a jornada, pelo comando e pela capacidade de resistir quando qualquer um teria milhões de razões para desistir com honra.
A festa depois foi demais. Faltou cerveja na cidade.

Por hoje é só.
Um ultrabraço para os amigos.
SEABRA.




4 comentários:

Kátia Seabra disse...

Aos amigos militares (do meu pai):
Sejam bem vindos a este espaço de confraternização e de incentivo às boas práticas de vida: esporte, dedicação, perseverança, companheirismo, lealdade, SOLIDARIEDADE... Pude ver tudo isso no ambiente da BR, sem nunca antes ter visto nenhum daqueles homens.
Foi uma experiência tão emocionante que mesmo hoje, passados 9 meses, choro ao ler os relatos e principalmente lembrando da entrada TRIUNFAL na cidade de Paraisópolis. Meu pai “levantou a galera”. Era tanto marmanjo emocionado, um monte de criança acenando pela rua e o som do carro dele tocando “we are the Champion” a toda altura. Depois do comando da Silvia (fisioterapeuta) e da adaptação do grito pelo Marcelinho (chop, chop, chop...), aquele “S” ambulante, no qual meu pai havia se transformado, tirou forças sei lá de onde e saiu numa disparada que foi difícil de a gente acompanhar.
Dias depois da conclusão da prova, no Sta. Mônica, eu disse que achava que ele deveria relatar a corrida pq assim, mesmo depois de muito tempo, a gente iria poder lembrar dessas emoções todas. Me pareceu que ele não tinha gostado muito da idéia, pq meu pai é assim mesmo, ele tem que “dormir” as idéias. Depois de um tempo ele reavalia as coisas.
Espero que ele continue escrevendo!
Até o próximo relato das aventuras do MEU PAI.

Kátia Seabra disse...

Pai,
As mensagens que mando para o seu endereço de e-mail estão voltando desde ontem. Parece que está cheia.
Bjs,

Kátia Seabra disse...

PAI, CADÊ VOCÊ?

BALEIAS disse...

Prezado Dr. Seabra, vi no site da prova que o sr. é um dos que selecionam os corredores. Isso que é chegar com méritos. Mais uma vez parabéns. Abraço Miguel Delgado. Estaremos juntos em Curitiba.