quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O prazer do fracasso


O título acima pode parecer um verdadeiro paradoxo. Não é.

Faz tempo que convivo com as dores próprias de quem procura superar seus limites e algo que me incomodava era: - quando eu não aguentar mais terei coragem de abandonar uma prova?

Agora vi que consegui. Agora vi que chutei o balde na hora certa.

Cada um de nós treina e gosta de um determinado esporte. Gosto de vencer longas distâncias, subidas e descidas, mas em terreno regular ou em praias.

Trilhas sempre me deixam assustado, pois enxergo mal e tenho medo de me machucar nos buracos e ficar sem treinar e competir por longo tempo. Já não sou criança e sei que minha recuperação será mais lenta e que voltarei antes da hora. Por isto procuro evitar contusões, embora as pequenas dores sejam inerentes ao esporte.


Fui fazer a prova Praias e Trilhas na bela Floripa. Todos me diziam das dificuldades do itinerário, mas eu sempre acabo verificando que a fera não é tão brava assim. Achei que exageravam, mas eu é quem subestimei as dificuldades que iria encontrar.

Lá trilhas são trilhas de pedras e tocos, limo e lama. Subidas bem fortes e descidas piores ainda, especialmente para quem já saiu com os joelhos 'meia boca'. Só fiz 21 km e tenho certeza de que era o recreio da prova, cujas dificuldades iriam se avolumar no segundo dia.

Com 16 km falei com meu filho Bruno que estava sentindo uma fisgada no adutor da perna direita, mas que achava que dava para terminar. Ainda lhe disse que havia decidido não fazer o percurso do dia seguinte, pois as trilhas não me davam nenhum prazer e todas as pedras nas descidas pareciam estar pontiagudas e apontando para o meio do meu rabo.

Eu subia com uma velocidade de 3,2 km e descia a menos de 2 km/h. Uma vergonha superada por qualquer 'véia prenhe'.

Depois de transpor uma pequena praia, havia novo trecho de trilha com 6 km entre subida e descida. Me preparei para o último sofrimento, já que pretendia recuperar o tempo nos 15 km de areia fofa do final.

Antes de iniciar a subida falei com os três integrantes da organização que me informaram que ali era o km 21 e que havia uma mina logo acima para beber água.

Subi não mais de 3 metros quando o adutor da outra perna saltou para fora. Ao tentar, instintivamente, me proteger da cãibra o adutor da direita também pulou do seu trilho natural. Era uma coisa bem feia de ver e muito pior de sentir.

Gritei para os meninos que me socorressem e ali mesmo decidi que estava fora. Minha travada foi em cima do riachinho da tal nascente e os socorristas tiveram que me deitar dentro da água. Nenhum deles sabia fazer as manobras para colocar os músculos no lugar e, enquanto tentava lhes explicar senti que os músculos do abdomem também queriam participar da festa.

Me joguei de corpo inteiro naquela água geladinha e esperei que as cãibras melhorassem por si só. Em pouco tempo já estava me recuperando e ainda fiquei olhando para o morro na minha frente, pensando se ia ou não.

Quando pude me levantar vi que tivera muita sorte de estar naquele ponto e com 3 ajudantes, pois qualquer movimento para arrastar as pernas já fazia as duas 'tirinhas de músculo' darem sinal de vida.

Os meninos chamaram um bombeiro que dava apoio no local e este providenciou o resgate. No início eu iria sair de balsa, mas depois ficamos conversando e eu, no meio do papo, disse que era Coronel do Exército. Não sei se isto modificou a decisão, mas em determinado momento o bombeiro foi para o alto do morro e voltou dizendo que o transporte mudara para helicóptero. Quando a equipe de socorro chegou eu já estava bem melhor. Me disseram que iriam me levar para o hospital da Base Aérea e eu lhes expliquei que estava inteiro, mas sem condições, apenas, de prosseguir na prova. Expliquei que minha equipe estava na praia seguinte e que podiam me deixar por lá. Assim foi feito e desci na praia a poucos metros do boteco onde meus familiares estavam.

Ao contar esta prosa para o resto dos atletas a gozação foi geral, pois todos queriam ser resgatados de helicóptero e para tal iriam dizer que eram amigos do Coronel.


Mas brincadeiras de lado ficam duas lições: a primeira é que os grupos musculares que me impulsionam na corrida não são os mesmos que me freiam nas pedras e segunda é que o medo causa mais cansaço que a intensidade da prova.


Eu posso dizer que corri com medo das pedras e totalmente travado, duro, sem prazer naquilo que fazia.


No dia seguinte acordei cedo e fui incentivar meus amigos. Durante parte da prova distribuí tudo o que havia previsto para ingerir naquela prova e, quando acabou fui atravessar o trecho mais longo de praia com uma corredora da Marinha que conhecera naquele momento. Corremos 15 km juntos e conversamos muito. Ela não caminhou um só instante e ultrapassou diversos atletas naquelas areias. Quando chegamos na próxima trilha nos despedimos e não guardei seu nome, mas sei que vamos nos encontrar nas 24 hs do Rio.


A prova é muito forte, impecavelmente organizada, e tem uma turma de atletas da melhor qualidade, onde o espírito esportivo se sobrepõe a todas as outras virtudes destes heróis.

Fiquei muito satisfeito por rever meus amigos da BR, especialmente o Allison. Fiz vários novos amigos, entre os quais Júlio Cordeiro (campeão e único representante do Norte-Nordeste), João Gabardo e sua esposa e meu futuro companheiro de BR Alberto Peixoto.


Por ter sido meu primeiro fracasso registro o meu prazer por ter abandonado esta prova na hora certa, pois não tenho nenhuma semelhança com cabrito, além de ter causado inveja nos amigos pelo turismo aéreo e também pelos momentos de ajuda aos que prosseguiam, sem contar com a descontração nas atividades extra-prova.


Nunca mais me aventuro em trilhas, mas recomendo a todos que possuem facilidades nas pedras, pois esta prova é uma das mais difíceis no Brasil e estão de parabéns seus organizadores e os bravos que chegaram ao fim da jornada.


Um ultrabraço e "Bora Corrê"

Seabra.
A imagem acima é uma homenagens aos meus colegas de turma de Cavalaria, que moram em Santa Maria e Bagé e foram me prestigiar quando corri as 24 horas de S. Maria. A eles meu muito obrigado pela força.